O músico da rainha
- Beto Scandiuzzi
- 12 de fev. de 2021
- 3 min de leitura
Era um destes escoceses que se reconhece a distância. Cabelo curto cortado ao estilo militar, sardento, rosto vermelhão, pele curtida no puro malte colhido nas terras mais altas da Escócia; não era alto, mas tinha uns ombros largos, braços grossos, um corpo viril e orelhas de abano. Oliver Thomas era o quarto de uma família de músicos da banda militar da guarda da Rainha da Inglaterra. Nasceu e cresceu em Bellville e, diferentemente de todos da cidade que sabiam tocar gaita, ele tocava caixa, ensinamento passado de pai para filho desde seu bisavô Sir Oliver Thomas.
Desde que a banda militar da guarda da rainha havia sido criada ainda no século 19, a caixa número I, a “snare drum”, a que marca o ritmo da música, esteve a cargo da sua família, geração após geração. Seguindo uma tradição secular, o filho só assume o posto na banda após a morte do pai. Já de pequeno ele sabia que um dia iria substituir seu pai, Oliver Thomas III. Para isso frequentou anos a fio a escola de música imperial aprendendo os segredos de como tocar a caixa, a precisão do toque, os diferentes tipos de sons, o equilíbrio das baquetas, a posição do talabarte, como esticar o couro além de estudar Filosofia, Sociologia e Artes Cênicas.
Conheci-o numa das minhas viagens, ele vinha das Ilhas Galápagos, onde, segundo me disse, havia sido convidado para uma palestra baseada no seu livro Guia prático para tocar caixa, que na verdade fora escrito e editado por seu avô Oliver Thomas II. Ficamos amigos e trocávamos correspondências de vez em quando.
Uns meses atrás me assustei quando recebi uma carta sua com timbre do Rio de Janeiro. Dentro ele me explicava que estava vivendo na cidade e me convidava para visitá-lo. Prometeu esperar-me no aeroporto. Eu imaginava reconhecê-lo à primeira vista, mas não foi fácil, estava transformado, já era quase um carioca, cabelos rastafári, pele tostada, camisa aberta no peito, colares, pulseiras douradas, anéis, bermudas coloridas, havaianas. E uma conversa ligeira, enrolada, uma misturada de inglês e carioquês.
Enquanto o táxi seguia a orla em direção à zona sul onde ele morava, na favela do Pavãozinho, me contava como havia chegado ao Rio. Dizia que numa manhã londrina, daquelas de inverno, abaixo de zero, seu instrutor de música perguntou-lhe se ele já tinha ouvido falar de uma escola de samba do Rio que tinha uma bateria nota 10. Ele disse que não, e o instrutor logo propôs:
— Vá conhecê-la! Vai ser bom para o seu aprendizado. Dizem que eles tocam como os deuses.
Ele veio, sem muito entusiasmo, pensando no calor, nos mosquitos, na distância. Hospedou-se na própria favela e nos primeiros dias ficou restrito a ver, ouvir e estudar a tal bateria e a enviar um relatório minucioso para o seu instrutor. Um dia voltou para a pensão mais cedo e encontrou a Ernestina, uma mulata com um corpo escultural, boca carnuda, risonha, passista da escola e que cuidava da limpeza da casa. Ele não conseguia tirar os olhos dela. Ela gostou e, encostadinha nele, lhe mostrou que da janela podiam ver a praia e o mar azul de Copacabana, o Pão de Açúcar e outras belezas. Mais tarde eles se deitaram na laje e, lado a lado, mãos dadas, ficaram olhando o céu, a lua, o Cruzeiro do Sul e estrelas, estrelas e mais estrelas.
Parou de contar e eu fiquei imaginando a linda aventura que ele estava vivendo. O táxi seguia agora pela praia do Botafogo e eu podia ver seus olhos brilhando, viajando, e pensava comigo: “Ah, a rainha que busque um outro músico para a sua banda. Esse já era!”
Dezembro, 2017
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