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A merluza e o psicólogo

  • Foto do escritor: Beto Scandiuzzi
    Beto Scandiuzzi
  • 13 de ago. de 2018
  • 3 min de leitura

A merluza e o psicólogo

Entra apressada no consultório. Nem se importa se tinha hora marcada. Sabe que se tivesse solicitado um horário não teria conseguido. Que psicólogo iria atender uma merluza. Num golpe rápido e forte, fecha a porta. Chacoalha as escamas e um fio de água amarelada mancha o piso rosa claro de mármore italiano.

Acomoda-se no divã, sem se importar com o olhar de reprovação do doutor. Tira os óculos D&G escuros que havia comprado no camelô à prestação. Relaxa, estala os dedos, cruza o rabo, coloca as mãos sobre o peito e olha fixamente o doutor.

– Que foi, doutor? Nunca viu uma merluza?

O doutor ainda perplexo, não acreditando no que vê, segue calado, olhos semifechados. Tem a mão direita segurando o queixo enquanto com a esquerda tamborila a mesa com um lápis Faber Castell.

– É – responde o doutor depois de um longo silêncio. – Merluza já vi, se bem que atualmente com os preços nas nuvens, cada vez se vê menos. E que fala, na verdade é uma grande surpresa. Por essa nem Freud imaginava!

– Ah, antes que me esqueça, – interrompe a merluza. – Diga à sua secretária que estou com a Unimed vencida. Depois que completei 60 anos me aumentaram tanto a prestação que ficou impossível pagar. Assim, esta consulta tem que ser na faixa. Se quiser podemos gravá-la e vendê-la para o YouTube. Uma merluza que fala vai ser um sucesso…

O doutor escuta e dá de ombros…

– O senhor deve estar pensando o que vim fazer aqui. Estou muito chateada, moral na ponta do rabo. Já não chega a nossa luta diária contra os mares poluídos, a pesca indiscriminada, a concorrência desleal com a merluza chinesa, agora querem nos desvalorizar. Interrompe, olha de soslaio para o doutor e sente que ele não está entendendo nada. E prossegue:

– Onde já se viu este governo vir a público dizer que valemos só R$10,50/kg. Onde já se viu isto? Por menos de R$25,00 nem trocamos de roupa. Isto é preço de sardinha barata em fim de feira de bairro…

Exaltada, suas guelras antes rosadas vão ficando transparentes. Respira com dificuldades…

– Calma, calma, – diz o doutor enquanto abre as janelas temendo uma tragédia. Já imagina os jornais de amanhã noticiando em primeira página uma merluza morta no seu consultório.

O ar puro que invade o consultório recupera a energia da merluza.

– Está bem doutor, até que no meu caso não está ruim. Com minha idade, os peitos caídos, barriga enorme, para a venda congelada, está bem. Reconheço que o governo tem razão. Mas uma merluzinha fresquinha, jovenzinha, com tudo em cima, cheirando a iogurte … O senhor sabe, doutor, somos como os humanos, mais do que carinho necessitamos que nos valorizem – filosofa.

– Calma – insiste o doutor. – Respire profundo, pense que você está em pleno mar azul, costa de Capri, rodeado de arrecifes e corais coloridos….

– Ah, nem me fale nisto doutor. Também o sentimental não anda nada bem. Me apaixonei outro dia por um merluzo, havia que ver doutor. Estilo Mastroianni, com aquela cara de melancolia e desamparo, uns olhos azuis, um rabo imenso dourado que quando nadava era só elegância. – Se cala de imediato, enquanto corre o olhar pelas paredes brancas e vazias do consultório.

– O senhor sabe de uma coisa doutor, nesta idade a gente fica muito vulnerável, frágil. Qualquer coisa nos afeta.

– E que passou, – pergunta o doutor

– Nem te conto doutor, aqueles malditos japoneses fdp inventaram um peixe eletrônico. Parecia de verdade. E fui logo me apaixonar por um desses! Só percebi a fria quando a pilha dele acabou.

Março, 2010

 
 
 

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