Caetana
- Beto Scandiuzzi
- 6 de set. de 2018
- 2 min de leitura
Veio para o sul numa daquelas caravanas de paus de arara, sofridas, intermináveis, cansado da seca, da fome, da vida sem vida, com um fio de esperança na cabeça, a roupa do corpo e um atestado de batismo na mão. Na altura de Minas, no meio de campos imensos e cerrados sombrios, pensou em desistir da viagem, quase ficou pelo caminho, desanimado e já com saudades de casa.
Chegou à cidade grande numa manhã cinzenta de junho, se assustou com o frio desconhecido, o despreparo da pouca roupa que levava e a cidade sem fim. Tinha pouco mais de vinte anos e era tão magro que se podia contar as costelas, uma por uma, de cima a baixo. Na cidade fez de tudo um pouco, começou catando lixo na rua, morou debaixo de pontes e viadutos, lavou defuntos e foi garçom, profissão nobre para quem vinha do norte longínquo. Até chegar para trabalhar na linha de montagem de carros aproveitando o incipiente processo de industrialização da cidade.
Trabalhou por quarenta e tantos anos sem faltar um dia e na despedida recebeu uma medalha de chapa por mérito e dedicação. Já idoso, viúvo e sem filhos, e recebendo uma miserável aposentadoria do governo que mal dava para comprar os remédios, se refugiou num pequeno apartamento, tipo quitinete, na periferia da periferia da cidade onde passava os dias e as noites ouvindo discos antigos de vinil numa vitrola a pilha.
Certa noite soou a campainha do apartamento. Ele estranhou, não esperava ninguém e ninguém o visitava há anos. A campainha insistiu, ele ficou curioso. Encostou a orelha na porta, não ouviu nada. Dentro e fora do apartamento o silencio era total. Depois de alguns minutos abriu a boca e falou, voz engasgada de quem não falava há anos:
– Quem é?
– É a Caetana – respondeu uma voz doce e fina do lado de fora.
Ele se surpreendeu, Caetana, chegou a balbuciar, e logo se lembrou de uma antiga namorada ainda dos tempos da seca e do agreste distante. E um rosto moreno, jovem, olhos castanhos e cabelos negros que iam até a cintura se desenhou na sua memória. E sorriu, um sorrisinho leve e frouxo, depois de muito tempo. Então tomou coragem e perguntou outra vez:
– É você, Caetana?
– Sim – respondeu a voz do lado de fora cada vez mais aveludada.
Então ele não teve dúvida e abriu a porta. Do lado de fora, imóvel, meio encurvada para a frente, estava a morte, no seu traje preferido de algodão preto, comprido até os pés, com uma gadanha afiada na mão.
Julho, 2017
PS: Caetana é nome de mulher, mas é também como os nordestinos chamam a morte.
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