Carta a Ubaldo
- Beto Scandiuzzi

- 10 de ago. de 2020
- 3 min de leitura
Caro Ubaldo,
As coisas por essas terras não estão muito diferentes de quando você ainda andava por aqui de sandálias franciscanas fazendo as nossas vidas mais alegres com seus escritos. Mas tenho uma notícia que vai deixar você contente, os seus livros desapareceram das livrarias. Tive sorte, tinha comprado um logo antes de você morrer. Ah, se você encontrar o Ariano diga a ele que os dele também se esgotaram. Só não sei como vocês vão fazer para cobrar os tais direitos autorais.
Mas, Ubaldo, foi relendo um dos seus livros, Um Brasileiro Em Berlim, que pensei em escrever essa carta. É que, coincidentemente, vivemos na Alemanha quase na mesma época, e me deu vontade de comentar com você as minhas peripécias por lá, algumas até parecidas com as suas.
Com respeito ao idioma, tive as mesmas restrições, até hoje não entendo como um país desse porte pode funcionar, e bem, com uma língua desta, com palavras que enchem linhas, trenzinhos de consoantes, três gêneros, sem falar nas dezenas de dialetos, que meus amigos alemães, acho que só para me agradar, dizem também não entender.
A maior das besteiras que fiz nesse capítulo foi quando, viajando por uma autobahn (rodovia), com um amigo alemão, comentei com ele a minha surpresa ao ver tantas placas indicando cidades que tinham o mesmo nome: ausfarht. E fiquei com cara de idiota quando ele me disse que ausfarht significava saída e não nome de cidade.
Ubaldo, não sei se você teve a oportunidade de conhecer uma zona por lá, é, casa de prostituição, ou sei lá como se chama esse lugar lá em Itaparica, onde você nasceu. Lá em Stuttgart, onde eu vivi, havia uma. Eu, de curioso, passava lá de vez em quando para passar o tempo e também para cumprir com meu programa de cultura geral. Como tudo por lá, a zona não era uma zona, era organizada, um prédio de três andares, limpo, pintado em três cores, por isso era conhecida por dreifarbehaus, a casa das três cores em alemão. As madames esperavam os clientes em roupas íntimas como em qualquer zona, em pequenos quartos perfumados ao longo de um imenso corredor, bem decorados, com uma cama de casal no centro e atestado de saúde pregado na parede. Quando a porta estava fechada, podia ser que a madame estava de folga ou ocupada com algum cliente. Mas o que mais me surpreendia era encontrar madames veteranas, e, digo mais, veteraníssimas, e que por aqui em nossas terras já estariam mais que aposentadas. Vendo aquilo eu pensava como alguém iria pagar pelos seus serviços. Mas se vê que havia público, caso contrário, não estariam lá, segundo a velha lei do mercado.
Ubaldo, também vi mulheres tomando sol nas praças no verão, algumas com pouca ou quase nenhuma roupa. E ninguém prestava atenção. Só eu. Mas passei uma pior quando fui com um amigo na sauna. Você pode imaginar minha surpresa, já no vestiário, quando chegaram duas mulheres e começaram a se despir ao meu lado na maior das tranquilidades. Era uma sauna mista. Eu tentei mostrar naturalidade caminhando desnudo como eles, mas foi por pouco tempo, meu lado silvícola falava mais alto, e põe alto nisso, e se manifestava deseducado quando lindas loirinhas passavam ao meu lado em pelo. Não me restou outra opção que usar uma toalha de banho e por segurança procurava ficar perto de uma piscina com água a -4°C, onde eu me jogava de vez em quando tentando acalmar meus hormônios tupiniquins.
E a inflação do Sarney? Quanta vergonha não Ubaldo? Numa ocasião, logo que cheguei a uma fábrica, me levaram a uma sala com vários alemães. Durante horas me bombardearam com perguntas tentando entender como uma pessoa normal podia viver num país com inflação galopante. Eu falei do overnight, IGP, correção monetária, mas acho que não fui convincente, eles seguiam me olhando como se eu tivesse chegado de Marte.
E os horários, se lembra Ubaldo? Ônibus que passam às 7h32 ou 13h59, dia após dia, sem qualquer atraso. Eu nem precisava consultar o relógio, quando as pessoas se levantavam no ponto do ônibus, o ônibus aparecia na esquina. Confesso que essa fobia por horários é uma das heranças desse tempo, sou incapaz de chegar atrasado a qualquer compromisso, até para a cerveja no bar com os amigos.
Caro Ubaldo, não te quero cansar, vou ficando por aqui. Termino dizendo que reli sua crônica Memória de livros. Pela enésima vez. Com um sorriso nos lábios, como dizia Jorge Amado, e umas lágrimas nos olhos de saudade, saudade da minha infância, não com tantos livros como a sua, dos meus pais e da casa onde nasci.
Agosto, 2014

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