Conversa de Amigos
- Beto Scandiuzzi
- 27 de jun.
- 3 min de leitura
Num desses dias raros em que os jornais anunciavam um tal de equinócio, época do ano em que o sol passa sobre o equador, fazendo com que o dia e a noite tenham a mesma duração, uma curiosidade abalou meus pensamentos: será a parte clara do dia igual à parte escura da noite? Eu poderia entrar em qualquer site de informação e obter a resposta. Mas não, pensei, vou provar com meu próprio método. Cronometrei o nascer e o pôr do sol por 24 horas para concluir que não são iguais: o claro ganhou do escuro, por pouco, mas ganhou. Resultado que a ciência explica, mas que não vem ao caso.
Nas horas em que estive acordado, fiquei sentado no meu escritório, onde tenho uma pequena biblioteca. Sim, pequena, apenas livros que li, que provavelmente vou reler em algum momento e alguns novos na fila de espera. Livros fora deste contexto são doados abrindo espaço para outros. Enquanto permaneci sentado fiz o que faço de vez em quando: converso com meus livros. Loucura, começo de Alzheimer, dirão os mais apressados. E eu poderia responder: e os que conversam com as flores, com os pássaros, com as paredes? Conheci uma amiga que, quando não tem com quem conversar, conversa com o rodapé da casa, segundo o marido dela. Os amigos dão risada, mas não falam que ela é doida.
Dizem os que conversam que os pássaros, as flores respondem. Meus livros também, mas às vezes permanecem em silêncio total como aquelas abadias medievais. Não se escuta nem um suspiro de volta. Pode ser que alguns continuem sua leitura sem que se possa escutar um passar de página sequer. Tampouco vejo algum no celular como seria o normal nesse novo tempo onde o aparelhinho reina soberano em qualquer conversa.
Sobre o que conversamos? Nada especial, conversa-fiada, sobre o clima, sobre o tempo que passa como um foguete, algum aborrecimento, coisas do cotidiano, quase nunca sobre literatura. Qualquer coisa, afinal, somos amigos e evitamos polêmicas e desentendimentos.
Na maior parte do tempo converso em português sendo a grande parte dos meus livros de autores brasileiros ou traduzidos à nossa língua. Pode ser que eu fale com livros diferentes em cada dia, quase certo que diariamente com algum livro do Carlos Heitor Cony e do Rubem Braga, meus autores favoritos, sem que isso cause algum ciúme entre os demais. Nunca escutei reclamação do Machado de Assis, do Guimarães Rosa ou do Graciliano Ramos, convenhamos autores com maior transcendência na crítica espacializada.
Cony sempre bem-vestido com aquele ar melancólico, talvez ainda com saudade do seu Rio de Janeiro, mas sempre atento aos meus comentários, coisa de quem foi educado em seminário e quase se tornou padre. Já Rubem, às vezes, não quer conversar. Olho-o e o vejo com aquele ar sombrio, fechado, tristonho, emburrado de quem dormiu mal ou recém-chegou daquelas noitadas nos bares de Copacabana, onde flertava com Tônia Carrero, então a mulher mais linda do Brasil. Nestes dias, nem conversa de passarinho ou da sua Cachoeiro o tira da ressaca.
Em algumas ocasiões converso em espanhol com meus livros editados nessa língua. Sem traduções. São poucos, mas que reunidos me enchem vários dias de conversa: Neruda, Benedetti, Vargas Llosa, García Márquez, Fontanarrosa, Eduardo Galeano e alguns outros elegidos a dedo.
Contam que Neruda escrevia apenas com tinta verde, Hemingway, de pé, Truman Capote, deitado, Alexandre Dumas, peladão. Cada um com sua mania. Eu, longe de querer fazer comparações, entre outras coisas, tiro ideias para os meus escritos nessas conversas com meus livros. Como essa que agora termino.
N.A.: Homenagem a Mario Vargas Llosa, peruano, Prêmio Nobel de Literatura 2010, membro da Academia Francesa de Letras e que nos deixou em abril passado.
José Humberto Scandiuzzi

Mais uma vez o BETO se destaca com esta linda crônica onde conversa com os seus amigos também escritores de diversas línguas. Parabéns Abs.