top of page

Em tempos de vírus

  • Foto do escritor: Beto Scandiuzzi
    Beto Scandiuzzi
  • 3 de abr. de 2020
  • 2 min de leitura

Quando eu era moleque, tinha um amigo, um pouco mais velho, Ademar se chamava, que desenhava muito bem. Quase tudo, rostos, paisagens e casas. Não sei com quem havia aprendido, o pai era lavrador e sanfoneiro nas horas vagas. Uma vez desenhou um prédio, lindo, linhas futurísticas e disse que seria a futura rodoviária do lugarejo. Noutra vez era uma casa de dois andares com uma magnífica sacada que tomava toda a frente da construção. Quando ele mostrava os desenhos, eu não tinha o que dizer, eu não sabia para que servia uma rodoviária e menos uma casa de dois andares e com sacada. Tinha sentido, eu não conhecia outro lugar além do lugarejo onde eu nasci e vivia, onde as casas eram simples, humildes, baixinhas, de meia-água num desenho irregular e monótono, uma ou outra mais requintada com alpendre, quintal e jardim.

Já era adulto quando pude desfrutar de uma sacada, não uma verdadeira, de casa, ampla, como havia desenhado meu amigo Ademar, mas uma de apartamento, nada gourmet, nada francesa, pequena, que mal alcançava para entrar de frente e sair de marcha a ré. Nessa vida toda, morei em vários apartamentos com sacada, um deles em Buenos Aires com vista para o imenso e amarronzado rio-mar, Rio de la Plata. Hoje sigo vivendo em apartamento com sacada, um pouco maior, não muito, suficiente para acomodar lindas flores e plantas e duas cadeiras onde passo horas lendo, na reflexão ou simplesmente no ócio.

Esse assunto veio à tona esses dias por causa de um tal vírus, coronavírus o chamam, invisível, mudo, silencioso, que dizem veio lá da China, já matou um montão na Europa, nos meteu um medo do diabo e nos enfiou em quarentena dentro de casa. Imune a arma branca, golpes de caratê e dinamite, parece estar em todo lugar pronto para atacar. Quando escrevo essas linhas se completa uma semana que estamos nessa e nas poucas vezes que fui à rua, para comprar comida, tive medo do vírus, um medo que nunca havia sentido antes.

Nessa época de isolamento, é bom ter a sacada, ajuda a tomar sol, sentir o vento fresco das manhãs, ouvir os pássaros, ver o céu azulado, brilhante, às vezes nem tanto, admirar as plantas e não entrar em paranoia nem cair no desalento. É impossível não pensar no dia que vamos sair dessa. Uma semana, um mês, não sei, mas sei que quando esse dia chegar vou estar nessa sacada, testemunha desses dias de incertezas, abraçando meus entes queridos e desejando que todos nós sejamos melhores do que antes do tal coronavirus. E que possamos nos lembrar desses tempos, sem traumas, como se fosse de um filme de ficção científica que assistimos, distraídos, numa tarde preguiçosa e cinzenta na Netflix.

Março, 2020

 
 
 

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page