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Homens das palavras

  • Foto do escritor: Beto Scandiuzzi
    Beto Scandiuzzi
  • 31 de mai.
  • 2 min de leitura

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Eu já havia vivido um par de anos na Argentina, sabia de Jorge Luis Borges, Ernesto Sabato, Julio Cortázar, mas somente em 2004, durante um “Congresso Internacional de la Lengua Española”, que se realizava na cidade de Rosario, sua cidade natal, vim a conhecê-lo: Roberto Fontanarrosa, cartunista, quadrinista, escritor, argentino.  Convidado como palestrante, aplaudidíssimo, falou sobre “las malas palabras”, tão inseridas na comunicação cotidiana como marginalizadas por uma pseudointelectualidade. Dizia que tais palavras, grosseiras, em um contexto adequado, reforçam, melhoram a forma de se expressar e brindam outras cores no linguajar. Se tornam “insubstituíveis, dizia ele, por sonoridade, força e contextura física”.

Voltei um ano depois quando Rubem Braga já era meu guru literário, e eu já tinha lido várias crônicas dele e escrito algumas. Eu escrevia, escrevia, tentando copiar seu estilo, sem saber se eram boas, mais ou menos ou para o gasto. Até então eu não as havia compartilhado com ninguém. Foi então que, numa outra viagem a Rosario, me apareceu a ideia: Por que não perguntar ao Roberto? Nesse ínterim eu já havia comprado e lido um dos seus vários livros de crônica.

Pelos colegas de Rosario, eu sabia que ele se reunia com alguns amigos num bar muito popular, El Cairo, uma vez por semana, em uma mesa exclusiva e reservada para eles denominada “mesa de los galanes”, “para comer e conversar, em geral temas leves, sem se aprofundar em assuntos pessoais, tampouco se fala de filosofia”, comentou “El Negro”, como era chamado pelos amigos.

Com minha crônica dentro do livro dele, receoso, me aproximei da mesa, parei ao seu lado e, quando ele levantou a cabeça e me olhou, não tive coragem de pedir para que lesse a minha crônica. Fiquei com vergonha. Para disfarçar, solicitei apenas um autógrafo, o que ele fez gentilmente. Outra oportunidade não houve, quando voltei à cidade no ano seguinte, ele já tinha falecido.

Me lembrei desse episódio recentemente ao saber da morte do escritor Affonso Romano Sant’anna no início de março passado. Ele conta que, aos seus dezessete anos, também tinha as mesmas dúvidas em relação às suas poesias como eu com minhas crônicas. Mas, diferentemente, saiu de Belo Horizonte, onde vivia e, confiante, foi ao Rio de Janeiro e se encontrou com Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, os poetas mais celebrados do país da época, para apresentar seus versos. Parece que lhe foi bem, seguiu a carreira e se tornou o grande escritor que todos conhecemos.

Também me lembrei do Roberto relendo uma crônica do Affonso ¾ “O homem das palavras” ¾, quando da morte do mestre Aurélio Buarque de Holanda, um homem de muitas palavras. Ao final ele diz.

“Alguns dirão: foi para a última morada.

Não.

Foi para a última palavra.

A só pronunciável de corpo inteiro.

Outras palavras, amigas, foram ao enterro e choraram. Algumas ali ficaram e se tomaram inscrição.”

Como Aurélio e Affonso, homens das palavras, Roberto também o era. Inclusive de “las malas palabras”.

 

N.A.: Homenagem a Fontanarrosa, há vinte anos do nosso encontro; a Affonso que nos deixou no início de março e a Aurélio, no cinquentenário de lançamento do seu “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”.

 

Crônica publicada no jornal Correio Popular de Campinas no dia 8 de maio de 2025

 
 
 

1 comentário

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Walter Colombini
03 de jun.
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Mais uma vez o BETO mostra o escritor que é fazendo esta linda crônica que sempre deixa a gente emocionado.Parabens BETO.Abs.

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