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Mercedes

  • Foto do escritor: Beto Scandiuzzi
    Beto Scandiuzzi
  • 10 de jul. de 2018
  • 2 min de leitura

Se chamava Baltazar, como o pai, em homenagem a um dos reis magos. O pai, analfabeto e de pai desconhecido, morreu esfaqueado numa briga de bar por uma bobagem qualquer, quando ele apenas engatinhava no chão de terra batida da casa de pau a pique onde vivia.

Era um menino misterioso e de poucas palavras; tão esquelético que quando respirava deixava aparecer a linha dupla de finas costelas. Andava sempre sem camisa mostrando a barriga grande e redonda de lombrigas. Nunca havia visto um sapato na vida, nem uma humilde alpargata roda nem um tamanco português.

Todas as manhãs se despertava, ainda com os olhos remelados, e se colocava em frente à casa, sem jardim nem portão, para ver o coronel Cristóvão, senhor de todas aquelas terras e gente, passar com sua Mercedes novinha em folha. A poeira fina que o carro levantava quase o afogava, mas mesmo assim ele repetia num fio de voz dia após dia:

– Um dia ainda ando numa Mercedes.

Passaram-se os anos, o menino cresceu, virou homem e aprendeu a ser motorista de caminhão. Estreou num Ford F600 verde, caindo aos pedaços com um escrito em letras gregas em cada porta: “Marthina”, com o “th” quase apagado. O porquê do Marthina ele nem tinha ideia. Puxava cana para a Usina Munqueira dia e noite, de segunda a segunda, com sol ou chuva.

Anos mais tarde trocou o Ford por um Chevrolet 57 vermelho e que tinha um pássaro de metal prateado com asas abertas sobre o capô. Em cada porta um escrito: “Marta Rocha”, em homenagem à  miss Brasil que quase foi Universo não fosse duas polegadas demais no quadril. E ele seguia puxando cana para a Usina Munqueira dia e noite, de segunda a segunda, com sol e chuva.

Um dia se cansou da cana e trocou o caminhão por uma jardineira marrom de bancos de madeira e que ele colocou o nome de “Gilda”, lembrança de Rita Hayworth, e que levava gente, porco, galinha, ganso e o diabo a quatro do Canindé, passando por Inderê, Japué, até o Delta já na divisa com o Rio Grande.

Certo dia não apareceu no trabalho e o encontraram morto na cama. Do coração, disseram. O enterro foi no mesmo dia à tarde com pouca gente e nenhum parente. E finalmente ele pode cumprir uma promessa, andar de Mercedes, uns poucos metros que fosse, no carro funerário, que afinal não era da marca Mercedes, mas que levava um escrito em cada porta, “Mercedes”, em letras garrafais, uma homenagem do dono da funerária a sua esposa já falecida. E que se chamava Mercedes.

Janeiro, 2013

 
 
 

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