O Canindé da minha infância
- Beto Scandiuzzi
- 12 de nov. de 2020
- 4 min de leitura
A palavra Canindé, segundo o dicionário, vem do tupi-guarani Kanindé, tribo de índios que habitava a região central do Ceará, onde hoje está localizada a cidade de Canindé com seus mais de 80 mil habitantes e destino certo de romarias em homenagem a São Francisco de Chagas. Pode ser também uma espécie de arara de plumagem azul, bico preto e partes inferiores amarelas. Ou ainda um tipo de faca comprida e afiada usada no sertão do Ceará. Os que gostam de futebol, no entanto, logo relacionam a palavra com o nome, não oficial, do estádio da Portuguesa, que se localiza no mesmo bairro da capital paulista.
Mas o Canindé ao que eu quero me referir é quase desconhecido, não está nos dicionários, nem no Google, um pequeno lugarejo ao lado da minha Aramina. Credito o nome ao fato provável de ter havido por lá muitas araras quando aquilo tudo que o rodeava era mata fechada e terra de ninguém. Calculo que tenha se formado no início do século XX quando a Cia. Mogiana estendeu os seus trilhos até o sul de Minas. Com máquinas a vapor que consumiam água e lenha, várias estações foram levantadas ao longo da estrada para o suporte logístico.
Com o passar do tempo o Canindé passou de simples parada de abastecimento para centro destacado de manutenções e manobras. E muitos ferroviários. E ao lado da estação se foi formando um lugarejo importante com negócios diversos e bailes estrondosos com sanfona, viola e pandeiro, e que varavam madrugadas. Bares e armazéns ficavam um ao lado do outro, sendo o mais importante deles, para mim, o do tio Zé “Cumprido”, irmão da minha mãe, que morou lá toda sua vida. Era o lugar onde eu mais gostava de ir de passeio, ocasião em que se podia comer sanduiche de mortadela, alguns doces, tomar refrigerantes e mastigar chiclete, que alguns mal informados diziam ser a bala que não terminava nunca.
Zé “Cumprido” teve vários filhos, e um deles, o Biroca, morreu numa disputa idiota com um amigo sobre quem bebia mais Coca-Cola. Um outro morreu num acidente rodoviário e me lembro de ir com minha mãe buscar o seu corpo na funerária para o enterro. Uma outra filha fugiu com o elegante cobrador da jardineira, de olhos verdes, cuja parada era em frente ao bar do tio. Ele era casado por segunda vez com a tia Tirde, ruiva, maciça, sempre de óculos escuros e a única que se atreveu a recusar uma dança com o meu avô Gildo, ameaçando pôr fim ao baile recém-começado.
O tio, espigado e magro, cabelo curto, olhos miúdos e atentos, gostava de dançar e era capaz de andar léguas atrás de um forró. E, quando precisava, dava uma de delegado e impunha respeito e justiça caso algum desavisado intentasse bagunçar a boa paz do lugar.
Para chegar ao Canindé havia uma estrada de terra que se tornava intransitável em dias de fortes chuvas. Passando o Inderê, uma outra estação de trem perdida naquele cerrado imenso, e já na metade do caminho, havia um córrego com uma ponte de madeira que mal dava para uma condução passar. Foi nesse córrego, um pouco mais abaixo, que caiu um trem ao atravessá-lo sem a ponte que uma forte enchente havia levado poucas horas antes. A única imagem que me ficou gravada na memória deste desastre era a locomotiva, uns ferros pretos retorcidos, enterrada na margem do córrego com a chaminé soltando fumaça como um animal agonizando.
Na entrada da cidade, à direita ficava a igrejinha, aonde eu ia com o padre rezar a missa todos os quintos domingos do mês, o que dava umas cinco missas por ano. Em frente à igreja havia uma árvore sombrosa sob a qual uns bêbados começaram a brigar, interrompendo a missa e colocando para correr padre e sacristão e umas velhas carolas.
Logo depois da igrejinha, a primeira casa à esquerda era o grupo escolar com uma torre e uma caixa d’água no alto, e onde por uns tempos morou a tia Dirce, irmã da minha mãe; seguindo em frente, cruzando os trilhos do trem já se podia avistar, à esquerda a estação de trem com suas paredes robustas de cimento e teto de zinco e com seu enorme pátio de manobras em frente. Na parede em letras garrafais negras a palavra Canindé identificando de longe o lugar.
Em frente da estação se descortinava a avenida principal, larga, em terra batida e plana como uma mesa de bilhar, com lindas casas e um movimento intenso de pedestres, carroças e cavaleiros de todo tipo. No fim da avenida se começara a construir uma nova igreja, grande, com duas torres laterais e que pretendia ser a maior de toda a região. Virando à direita, já na saída do lugarejo, no meio do cerrado, estava o campo de futebol de terra batida e traves de madeira, palco de jogos históricos entre o time deles e o nosso, que os mais velhos contavam com voz embargada e eu ouvia de olhos arregalados.
Tudo isso me veio de golpe á memoria quando passei por lá uns anos atrás a caminho do Deus me Livre. Difícil reconhecer o outrora Canindé tão próspero da minha infância e que não suportou o vazio deixado quando aposentaram as locomotivas a vapor da antiga Cia. Mogiana. Apenas uns poucos moradores, descrentes, insistiam em morar no lugarejo que aos poucos vai desaparecendo acuado pelos novos tempos e pela plantação da cana-de-açúcar. A velha estação de trem, abandonada, parecia um casarão habitado por fantasmas; na parede a palavra Canindé, meio chamuscada, mas nítida, resistia à espera de trens que não passam nunca; da velha igrejinha não sobrou nada e da nova, umas poucas paredes insistiam em ficar de pé a espera de missas no quinto domingo do mês que nunca serão rezadas.
Pela grande avenida, que aos olhos do adulto já não era tão grande assim como era aos olhos do menino, agora vazia, sem viva alma, num silêncio de morte e um cheiro de melaço no ar, imaginei a alma do tio Zé “Cumprido” caminhando, nos seus passos largos, quase de militar, fazendo a ronda como um velho xerife dos filmes de cowboy do velho oeste.
Novembro, 2015
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