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O escravo de D. Pedro II

  • Foto do escritor: Beto Scandiuzzi
    Beto Scandiuzzi
  • 11 de set. de 2020
  • 4 min de leitura

No ano da graça do senhor de 1846, D. Pedro II, com apenas 21 anos e uma grande comitiva, visitou Campinas como parte de sua estratégia de consolidação do império. Permaneceu dois dias, vindo de São Paulo e daqui seguiu para outras cidades do interior paulista, sempre recebido com todas as honras, como correspondia. Ruas cheias, palmas, estrondo de ronqueiras, cavalhadas e até uma banda marcial sob a batuta de Maneco Músico, pai de Carlos Gomes, que ainda muito jovem, mas já aprendiz de músico, tocava “ferrinho” na banda do pai. Não se sabe se à raiz da sua apresentação, mas o certo é que, mais tarde, D. Pedro iria ajudá-lo a completar seus estudos na Europa.

Na cidade D. Pedro ficou hospedado na casa do cidadão Felisberto Pinto Tavares, português e rico comerciante, e que ficava na esquina das ruas Dr. Quirino e 14 de dezembro. O lindo casarão sobreviveu até o início dos anos 70 quando enfim foi vencido e derrubado pelo tal do avanço imobiliário. Vivi por vários anos numa rua paralela, a 10 de setembro, e era comum vir a pé ao centro subindo a rua Sacramento. Algumas vezes, para variar de caminho, descia a Dr. Quirino e cruzava a 14 de dezembro onde outrora estava o solar do Felisberto e que hoje abriga um lindo edifício. Numa destas passagens avisto na entrada do prédio um senhor negro, magro, cabelos brancos, corpo meio curvado, cachimbo preso num lado da boca, idade incerta e vestindo apenas uma túnica de algodão encardida, surrada e que o cobria até os pés descalços. Fazia frio, e curioso, lhe pergunto se não seria melhor entrar e se abrigar melhor. Com uma voz rouca, fraca, enrolada, e que parecia vir do além, ele me responde:

– Olha, meu senhor, eu não moro aqui, se o senhor tem tempo eu lhe conto a minha história. Claro, eu lhe disse, sou todo ouvidos, adoro uma história. E ele começou a contar:

– Eu era escravo na comitiva do D. Pedro II quando ele visitou Campinas naquele ano longínquo, a mão de obra, o senhor entende, né? O que fazia o serviço sujo. Fiz que sim com a cabeça e ele continuou.

– Para evitar a fuga de escravos, muito comum, eles ameaçavam com torturas, prisão e o pior castigo, uma maldição, diziam que, após a morte, a alma ficaria penando por aqui sem nunca chegar ao céu. Havia uma exceção, a alma poderia ir embora se houvesse uma nevada, que como todos sabemos nunca nevou por aqui. Acontece que numa das visitas do imperador a uma fazenda da região, Sete Quedas, acho que era este o nome, havia muitos colonos, escravos e eu me apaixonei por uma delas, Lucrécia. Foi amor à primeira vista.

Neste instante ele para, olha para o infinito, parece viajar no tempo e seus olhos ficam marejados. Depois de uns minutos calado, dá uma longa cachimbada, me olha e retoma a história.

– Eu não pensei em outra coisa, abandonei a comitiva e fugi com ela. Tivemos onze filhos, fomos felizes e muito antes da Lei Áurea, já éramos livres. Mas a velhice chegou, os filhos se espalharam por este mundaréu, e um dia, triste, a Lucrécia morreu. Eu não queria mais viver, e também morri. Morri em termos, minha alma ficou perambulando por aqui, como rezava a maldição, todo este tempo sem ir ao céu, nem ao inferno tão pouco ao purgatório, como castigo pela minha fuga da comitiva do D. Pedro lá atrás.

Com os olhos arregalados, me afasto um pouquinho e logo perguntei, então o senhor é um fantasma? É mais ou menos isso, seu moço, ele responde, ando por aqui, por ali esperando uma nevada que me leve para o outro mundo ao encontro da minha Lucrécia. Eu vejo as pessoas, mas as pessoas não me veem.

Era verdade, notei, enquanto conversávamos, que várias pessoas haviam passado e me olhado como se eu estivesse falando sozinho. E então eu perguntei, como nunca te vi antes, como pude vê-lo hoje?

– Eu não tenho a explicação, seu moço, nestes anos todos poucas pessoas me viram e falaram comigo, não sei o porquê. E nuns passinhos lerdos se afastou pela 14 de dezembro em direção à Anchieta.

Eu fui embora com a cabeça a mil sem saber se acreditava na história ou pensava tratar-se de mais um destes malucos que andam pelas ruas da nossa cidade. Nos dias seguintes, eu passei e o avistei parado, com a mesma roupa, no mesmo lugar, na mesma esquina. Eu, de longe, o saudava, ele respondia e eu seguia o meu caminho.

Até que uma noite, semanas depois, um frio como nunca antes invadiu a cidade, no rádio se dizia que poderia nevar de madrugada. Na manhã seguinte, era um sábado, me lembro bem, eu fui caminhando em direção ao centro e passei na esquina da Dr. Quirino com a 14 de dezembro. Ainda fazia frio, tudo era silêncio e se podia apenas escutar uma jovem com uma vassoura na mão resmungando e limpando a calçada coberta com uma fina camada de flocos de neve. Havia nevado na esquina. Passei por lá muitas outras vezes, nunca mais vi o negro vestido de algodão.

Julho, 2020

N.A. – Crônica publicada no jornal Correio Popular de Campinas no dia 14-8-2020

 
 
 

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