O saxofonista
- Beto Scandiuzzi

- 11 de set. de 2020
- 3 min de leitura
O pistão, também chamado de trompete, é o instrumento de sopro que mais gosto de ouvir, desde quando, ainda adolescente, fui apresentado ao Herb Alpert e seus Mariachis no seu delicioso LP “Whipped Cream & Other Delights” que um colega do colégio me presenteou. Chamado o rei dos metais, é um dos principais (e dos mais recentes) instrumentos musicais da nossa época.
Mas se eu gostava tanto assim do instrumento, por outro lado, nunca tive a força de vontade suficiente para aprender a tocá-lo. Nem o pistão nem qualquer outro instrumento. O máximo que cheguei nesta arte foi tocar caixa de repique na fanfarra do colégio, época em que sistematicamente, por maior que fosse nosso esforço, éramos sempre derrotados nos confrontos dos desfiles anuais pela fanfarra do Colégio Profissional, nosso eterno rival. Como desculpa e inveja dizíamos, que eles não tinham uma fanfarra, era quase uma banda militar ao contar com uns pistonistas emprestados do Colégio Cristo Rei da cidade de Uberaba. Mas é o saxofone, junto com o acordeom que uma prima sabia tocar, que me traz boas lembranças da minha infância.
Lembrei-me do instrumento lendo a notícia do bicentenário do nascimento de Adolphe Sax, um belga que o inventou e o patenteou em meados do século XIX. O som do sax da minha infância vinha do sax do “Orelio”, (se chamava Aurélio), filho do Sebastião Dias e da D. Rina, e que morava na penúltima casa da turma da Mogiana, bem no fundo da nossa casa, e parede-meia com a casa do Mané Jorge, um mulato forte, e que morreu soterrado quando ajudava na construção de um viaduto da linha do trem da Mogiana. O “Orelio” era amigo do meu pai e tocava numa banda de uma cidade vizinha, no nosso povoado não havia banda desde muito tempo atrás quando meu bisavô formou uma que fez sucesso por muitos anos.
O “Orelio”, que durante o dia trabalhava no posto de gasolina, ensaiava o sax à noite num quartinho debaixo de uma mangueira que havia no fundo da sua casa. Eu, deitado, olhos abertos, escutava e me deliciava com as músicas que ele tirava do seu sax dourado. Mas o que para mim era quase uma serenata, se tornava uma tortura para o meu pai e meus tios Anésio e Max que dormiam cedo e acordavam de madrugada para trabalhar.
Foi então que o tio Max teve a ideia de tentar parar os ensaios do “Orelio”. Uma noite, ele tinha apenas iniciado o seu show, quando o tio se aproximou e atirou pedras no telhado de zinco do quartinho. O “Orelio” pensou que eram fantasmas e se mandou pra dentro de casa. A cena se repetiu outras noites até que o “Orelio” desconfiou que não havia nada de sobrenatural, as pedras eram de verdade. E logo, equivocado, ligou o tio Anésio ao episódio. E preparou a revanche.
Nesta época o tio Anésio, com seu F 600 vermelho, puxava cana de açúcar para a Usina e para não perder tempo pedia à tia Irene que deixasse o caldeirão com a comida no posto de gasolina do “Orelio”, a caminho da Usina. Quando o tio chegou à Usina, enquanto baixavam a carga, ele foi almoçar. Abriu o caldeirão, meteu o garfo misturando o arroz com o feijão e …..surpresa: espetou uma dentadura. O tio perdeu o apetite, sapateou, esbravejou, mas a primeira ideia que lhe passou à cabeça foi: ih, a Irene se distraiu e deixou cair a dentadura no caldeirão. À tarde ele chegou em casa meio desconfiado, olhou bem a tia e teve outra surpresa: a tia tinha bem colocada a dentadura.
Não se passou muito tempo até se descobrir que o “Orelio” havia sido o autor da brincadeira, que logo se desculpou com o tio e tudo terminou bem. Todos sabiam que ele gostava de aprontar, e o tio, sempre de bom humor, sabia entender uma boa brincadeira.
O quartinho dos ensaios do “Orelio” já não existe mais, o “Orelio” já toca na banda de São Pedro, mas a mangueira e a casa, lá na turma da Mogiana, de paredes de concreto e vazia, ainda estão de pé. Convivendo com algum fantasma saudoso do som meio rouco, leve e afinado do sax dourado do “Orelio”. Como eu.
Novembro, 2014

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