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O Zé de Campinas

  • Foto do escritor: Beto Scandiuzzi
    Beto Scandiuzzi
  • 5 de out. de 2018
  • 3 min de leitura

Era uma daquelas manhãs de começo de verão, ensolaradas, quentes, mas sem chuva. E eu saí a caminhar, matar o tempo, diria. Triste dizer assim nesta altura do campeonato onde tempo é o que menos me resta, mas é o que há, que fazer? Vou pela Princesa e lá embaixo, na Uruguaiana, dobro à esquerda em direção ao Centro. A rua é tranquila, de pouco movimento, mas é subida e eu vou devagar cuidando dos joelhos e controlando o fôlego. Pouco à frente, na esquina com a Pedro A. Cabral, precavido, paro, levanto a cabeça e lanço um olhar 180° antes de atravessar. Nesse movimento, observo do outro lado da rua um senhor, também parado, esperando para cruzar. Sob a pequena sombra do poste da luz, parece cansado. Firmo a vista e o reconheço: é Zé Duarte, famoso técnico de futebol, inconfundível naquele chapéu que ele sempre usa, presente da família Cury, antigo fabricante de chapéus da cidade.

Curioso, cruzo a rua em diagonal, me aproximo dele e digo num tom gentil:

– Bom dia, Zé. Como vai?

Ele levanta o olhar, surpreso, tentando me reconhecer, e responde sem muita convicção.

– Bom dia.

E ameaça seguir em frente. Então eu tento parecer natural, criando um clima de conhecidos, afinal eu o conhecia de longa data via rádio e TV. E engato uma segunda pergunta:

– E aí, Zé, que anda fazendo?

Ele me olha curioso, como pensando de onde saiu este cara, será algum repórter? Mas responde depois de alguns instantes:

– Nada, matando o tempo. – Ele também, penso. – Andando para lá e para cá, medindo rua como se diz lá no interior. E solta uma risadinha leve, triste.

– Algum time em vista para treinar? – Pergunto.

– Não, – responde. Já estou velho. Agora os times só querem treinadores jovens, como se já não soubéssemos mais nada. Esquecem que a vida é feita de experiências vividas e conhecimentos adquiridos. A vida é um contínuo aprendizado.

Neste momento alguém o chama, ele se vira e acena para um senhor da nossa idade que passa do outro lado da rua com a camisa da Ponte. E, se voltando para mim, diz:

– Ainda bem que os mais velhos se lembram da gente, né?

Eu aproveito o gancho e pergunto:

– Alguma mágoa, Zé?

– Não, responde ele, sou feliz, a vida me deu tudo, e era um encanador quando jovem. A vida é feita de tristezas e alegrias.

– Uma tristeza, insisto.

– Ah, digamos que eu fiquei muito triste com a derrota da Ponte para o Corinthians na decisão do Paulista de 1977. Nosso time era um dos melhores do país e não merecia perder. Houve coisas estranhas naquela decisão.

Então ele ajeita o chapéu na cabeça, despede-se com um movimento de mão, olha para os lados se certificando de que não havia carros, cruza a rua e desce a Uruguaiana no sentido do estádio do Guarani. Eu o segui com o olhar até que ele dobrou na Princesa, pensando: Zé, como corintiano, você não sabe como sofri naquela noite de 13 de outubro de 1977, deixando para trás 23 anos sem títulos e muita tristeza.

O Corinthians ganhou, mas a Ponte era muito melhor.

Janeiro, 2018

Zé Duarte foi técnico de futebol em vários clubes do Brasil, mas teve maior sucesso nas equipes de Campinas, Ponte e Guarani, que ele dirigiu em várias oportunidades. Morreu em julho de 2004. Pouco antes da sua morte eu cruzei com ele na Rua Uruguaiana. Mas não conversamos. Uma pena!

Crônica publicada no jornal Correio Popular de Campinas no dia 16/8/2018

 
 
 

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