Sobras de memória
- Beto Scandiuzzi

- 3 de abr. de 2020
- 2 min de leitura
Desci num salto os três degraus da escada da porta da entrada na lateral da antiga casa onde morávamos, ainda a tempo de ver minha mãe terminar de controlar com sua régua de metal os litros de leite que o caminhão do Lacticínio vinha buscar cada manhã. Eu vestia a roupa de todo dia, calça curta de brim cáqui, suspensórios e camisa xadrez. Meus pés descalços logo sentiram a terra fresca e umedecida pelo orvalho da madrugada. O Sultão correu em minha direção balançando o rabo, eu lhe fiz um carinho e ele voltou para o seu lugar de sentinela.
Cruzei o portão e poderia ter virado à esquerda, contornado o quintal da nossa casa e entes de cruzar a linha do trem encontraria uma faixa de mato e ervas-cidreiras, onde me escondi quando os padres vieram me buscar para me levar ao seminário. Mas acabei virando à direita pela rua cascalhada, fiz que não vi a tia Olinda, que saia pelo portão da sua casa, certeza de que iria me pedir um adjutório, e logo à direita corri os olhos gulosos pelo quintal do tio Luís, comprido e cheio de frutas.
– Você quer uma romã? Você gosta de mamão? – perguntou ele, uma repetição diária, na sua voz rouca e cansada.
Ia dizer que sim, já sabendo que ele me daria a romã, mas não o mamão, mas minha resposta foi abafada pelo barulho da máquina de beneficiar arroz que estava em frente, num prédio gigante e que à noite era visitado por assombrações.
Logo adiante, encontrei Frei Rosalvo, que descia do seu Jeep azul em frente à igreja de Santo Antônio, em forma de cruz, torre em três andares e uma cruz de ferro no topo que se iluminava à noite. Enquanto fazia o sinal da cruz, Frei Rosalvo me lembrou da missa que deveríamos ir rezar no Canindé, era o quinto domingo do mês. No sábado seguinte era a vez da fazenda Pedra Branca.
Do outro lado da rua o tio Tunin, sentado numa cadeira encostada na parede da casa que havia sido do seu pai, meu bisavô, lia a bíblia ou algum livro do Zarur. E eu podia ouvir longe La Paloma, com Billy Vaughn, girando na vitrola do Jorjão.
Pensei em dobrar à esquerda, mas me lembrei que essa rua ainda não estava aberta, segui caminho ao centro, disse um bom-dia de passagem ao velho Guilherme, amarelo como açafrão, sempre descalço e de pijama e que vivia sentado em frente à casa como uma estátua. Cruzei a praça com bancos de pedra, toda arborizada com fícus, uma árvore frondosa e infetada de lacerdinhas e uma fonte luminosa no centro, sem água, sem luz e empapelada com propaganda do padre Godinho a deputado. Do lado, uma chapa preta encostada num poste anunciava o filme da semana, pintado em alvaiade: Sabrina, com Bogart e Hepburn.
Do outro lado da praça deveria estar a estação de trem da Mogiana, marco primeiro da fundação da cidade, mas estranhamente não estava. No lugar onde deveria estar, era um enorme vazio, um descampado sem-fim. Longe, escutei um apito agudo e triste como de trem fantasma.
Toca o despertador. E acordei!
Agosto, 2013

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